Num crescente absurdo, me aparece que naquelas badaladas longínquas, um gosto qualquer pelo retorno de acontecimentos se apegando aos menores pensamentos. Pois, ainda que no bater de asas das borboletas eu desconheça qualquer gosto por surpresas. Contudo, uma força estranha surge em meu peito, que faz crescer lentamente minha aflição, meu desespero é incompreensível diante das cores que completa as asas das borboletas.
Observo e admiro quieto as outras figuras deselegantes, vorazes com roupas caras andando pelas calçadas e cantando músicas sem sentido. O som que rebatendo nas paredes dos enormes prédios acalmam meus ouvidos, pois não é o mesmo som que eles ouvem. O som dos carrilhões da catedral assusta os pequenos pássaros e estende as mãos para me acalmar. A sensação é absurdamente estonteante, nem sinto o meu coração bater, como se tivessem lançado um feitiço no tempo calando meus sentidos, se é que isso é possível.
Sons inigualáveis e etéreos, singulares sons que encantam e extraem as lágrimas da senhora que faz o sinal da cruz defronte a catedral e que aos poucos dá sentido aos diferentes sentimentos fazendo-a aceitar sem questionar as palavras do ser usando um vestido.
Ela é simplesmente linda, a senhora também, mas não é ela; é única com estilo diferenciado, cheia de belas curvas, totalmente diferente das outras aqui da cidade, e, das cidades vizinhas. Aliás, muitos paravam para admirá-la e fazer uma fotografia como recordação. A mais bela das catedrais, não é a mais antiga da capital. É repleta de imagens entalhadas nas paredes, muitas e muitas estátuas (pequenas, médias e grandes) estrategicamente posicionadas em cada canto. Sua cor deixa transparecer sua personalidade, sua abóbada esverdeada reflete o encanto de uma reforma íntima que a todos acomete quando entram em sua dependência.
Quando não a estou observando, sentado no meio-fio do outro lado da praça, sem pressa, contorno os limites da minha inspiração do lado de fora tocando-a com a ponta dos dedos sinto suas estórias emergirem em minha cabeça, desse modo, encontro-me dentro dos sentimentos dos milhares de seres que ousaram por ali passar, e, lá, no interior de seu confortável ser, percebo que ali, é o enorme coração daqueles seres pequenos e perco-me enquanto as horas se desmancham sob a luz do dia ocultando os vultos, então permaneço submerso em sua paz.
Ah! A musicalidade daquele carrilhão é hipnotizante, me faz viajar, contudo, há medo desenhado em cada nota musical, minhas viagens nem sempre são agradáveis quando estou envolvido pelo sono. Assim… Permaneço e nem sempre me esqueço dos pesadelos.
Por vezes, acho-me desorientado! Perdido sobre minhas alucinações, ouço músicas que ninguém mais ouve, assisto as figuras vestidas em trajes diferentes, que outros visitantes não veem ao transitar por entre a multidão sem ouvir o sino badalar.
Recordo-me dos sons, acalmo os pensamentos sob a influência de alguns acordes que aprendi e o sangue agora flui calmamente nas veias diminuindo minha ansiedade. Analiso a realidade bárbara, desnorteadora que finca ao peito alheio suas garras sujas, infectadas pelos vírus da arrogância que faz as figuras olharem e nada enxergarem.
___Uma formiga num mar de seres simulando estar tudo bem, sim é assim que me sinto. Olho ao redor, ao redor do mundo e nada percebo quando o veículo arranca ao ver que o semáforo está verde. Hoje a indiferença com o meu desequilíbrio é igual ao desrespeito dos outros dias, enquanto a escuridão nada fala. Minhas crises de identidade e de labirintite fazem com que, a cada dia eu me apoie cada vez mais em minhas ideias absurdas.
No meio de milhares de estórias que se perdem por não ter um ouvinte, vejo-me desequilibrado, perco o prumo atrapalhando o trânsito, e então, sento-me ao meio fio vendo a esperança passar do outro lado da rua quando sua mente atira sem aviso deixando os corpos desnorteados. Sei, estou perdido…
___Sim! Fico girando. Girando, perambulando pelas ruas de pedras sujas do centro velho, num carrossel desenfreado todos dizem que sou mais um bêbado em um parque velho, abandonado em um corpo surrado.
Julgar é mais fácil do que estender as mãos.
___Estive presente por incontáveis períodos desacordado, nesse estado procurei qualquer coisa para me agarrar e salvar um pedaço do dia. De repente, nem sei como, nem de onde surgiu algo para alargar o significado da solidão, gélida que feito gritos no escuro enchem de pavor meu espírito perturbado.
A solidão é a maior entre todas as doenças, silenciosamente ela devasta com os sentimentos, comportamentos e faz com que criaturas até então normais, se enveredem pelas calçadas.
___Não, não! Os psiquiatras e psicólogos pensam que entendem o desenvolver dessa trama, pois assistem a filmes dentro de uma sala com ar-condicionado, com um copo de água fresca ao lado e uma estante cheia de teoremas.
___Preciso gritar, e grito alto, muito alto. Não me interrompa!
Quando o peito se torna uma prisão grosseira, abandonada dentro de um corpo machucado, as ideias absurdas de poder ser qualquer um é envolvido pelo silêncio do mundo.
___Quem sou eu? Quem nunca se perguntou?
Ser um desses profissionais que trabalhavam as ideias de dentro de um consultório que resolveu ir conversar com um paciente em seu habitat natural, um lugar com cheiro de merda e urina. Talvez.
___E, eu sou quem? Quem é você?
Sou o tipo de pessoa que muitos veem e não entendem e sou o ser que a maioria despreza.
___Quanto tempo é preciso para que um ser deixe de ser humano?
Muitos corpos desfilam pelas diferentes calçadas e indiferentes aos corpos deixados abatidos e desnutridos não os consideram como humanos.
___Você aí. Sabe me responder?
Talvez você não me enxergue sentado em sua calçada, batendo na janela do seu carro….
___Provavelmente não saberá responder.
O corpo tem esse desgaste natural e triste, ofendido pelo caminho, à mercê dos que não sabem sentir qualquer coisa além da superfície mesquinha das classes. Pervertem, tomam, desfazem qualquer coisa que lhes pareçam atrapalhar suas miseráveis existências.
___Responda, se sabe, quanto tempo é preciso…
Mudar o caminho todos os dias é um costume. Diversas vezes ao dia o trajeto é mudado para não deixar pistas e perceber que, nenhum caminho, é o caminho ideal. Ainda assim, continuar mudando de rua, de calçada todos os dias, apenas para não ser lembrado pelos normais.
___Sinto muito! Hoje não tenho nada.
Esquivo-me de confrontos, eles não diferenciam quem está só de passagem. Já tenho meus próprios pesadelos. Não quero compartilhar dos seus pesadelos.
Apesar disso, no íntimo cresce abertamente sentimentos que não me deixam esquecer as feridas expostas.
___Todas elas.
As fraturas são por conta das quantidades de vezes que o equilibrista se distraiu com a linda bailarina rodopiando para lá e para cá, ele seduzido pelos movimentos delicados perdeu o equilíbrio e foi parar em uma sala de emergência. Quando muda o tempo ainda sinto dores, sou melhor que os meteorologistas na previsão do tempo.
___Mas, o palhaço, sou eu! De cara borrada…, desmedido e triste, sem um circo real, sigo tranquilo analisando as sinuosidades no canavial que somem diante de meus olhos.
O verde é inebriante quando se para de frente para as ondulações no outdoor e como se fosse passarinhos viajando nas refrescantes brisas que desfiguram os parques da cidade elas correm de braços abertos numa tremenda algazarra por entre os carros.
___Saber que pertenceu a um mundo formidável. E, que sabia conduzir todas as emoções e até o sentido de direção, sem identificar a procedência é tortura demasiada. Qual é a verdadeira morada? Onde é nossa casa, Senhor?
Continuam correndo até viverem sem distinção, são muitos e poucos são vistos, agora, tanto faz o branco ou o preto; a terra ou o asfalto; todos e tudo se resume a uma coisa só… Sobreviver aos minutos conforme é a intensidade das mensagens, é indispensável, é vital saber ver os sinais. Mas, o que é viver?
___Sim, eles sabem o meu nome, porém não me conhecem!
Querer algo é natural…, querer tudo, talvez, não querer nada, aí sim é ser anormal. Ter tudo ao mesmo tempo e não usar o que se tem, ou, ser o que se é sem se esconder por detrás dos falsos perfis. Nada o tempo todo, é enlouquecedor essas coisas vazias desfilando rotineiramente, tentando solucionar as equações esquizofrênicas da vida de rua. É por isso que de vez em quando alguém sai por aí fazendo doideras e ninguém o entende. Quem é que puxa o gatilho?
Ser bom ou ser ruim só depende de quem puxa a arma primeiro, pois o sujeito nasce na imaginação e se constrói orgulhosamente outro dentro do medo…,
___Eles enxergam em mim uma arma pronta para disparar.
Não há estatística nos órgãos públicos que descrevam os números de conflitos numa cidade desse tamanho.
___Não se preocupe, ninguém liga para um sujeito qualquer no meio da multidão gritando por liberdade. O individualismo é a regra condizente com as ações dessa gente alienada. Grite e grite com vontade.
Verdades e mentiras também seguem a mesma lei do bem e do mal…, só quando o conflito se acaba e sobe o cheiro de desespero e solidão é que se sabe a direção a se tomar.
___Digo mais, são mais espertos e deixam tudo na amargura dos tempos. A mágoa é luxo que não se pode guardar nas ruas. Grite!
Criaturas perambulando, sem se preocuparem com o depois, nada os incomodam, nem o tempo, nem tão pouco a fome. O gatilho é a ocasião! Não dá para esquecer dos problemas, mas se resolve uma coisa por vez, geralmente se esconde a fome dentro de outros vícios.
___Aquele lá na esquina é que vende esses produtos…
Ser um perdido que só acha o caminho olhando para o próprio umbigo é uma vantagem. Engolir a seco a raiva de nada poder resolver e entregar a vida em prol de poucos momentos de paz, não é luxo, é necessidade.
___Os pensamentos alheios em nada me interessam. Vai procurar o que fazer e pare de encher o saco.
O corpo surrado aparentando homem passado de meio século, transita por vielas fétidas e ruas assombradas, onde poucos têm a ousadia de passar. Lugares fétidos, sujos, imundos, cheios de bichos e pessoas nada confiáveis são os esconderijos perfeitos.
___Porque ainda me segue. Se eu quisesse um cachorro arrumava um de verdade!
Bem, o homem encorpado e de cabeça branca, cabelos alongados e maltratados, expressa na pele alva como o isopor manchas dos tempos e nos braços e mãos longas uma força descomunal deixando nas bocas e mentes a fama de assustador. Tem porte requintado, embora fale muito pouco, sua dicção é perfeita, cheia de palavras difíceis.
___Vou te chamar de Tarzan, sim, foi o nome do meu primeiro cachorro.
Cresceu no esplendor dos dias, onde, seus pais ainda se faziam donos de muitas riquezas e conhecimento. O corpo sempre ereto, os ditados certeiros e palavreados singulares foi a maior herança de um velho cheio de manias. Ainda se mantém como no passado e denuncia-se quando conversa com os moradores das ruas. É uma peça de ouro afundada num lamaçal, sem luz e brilho, mas chama a atenção mesmo sem querer.
___Nada fizeram para trazê-lo para a realidade?
As flores não conseguem suprir o fedor que os boçais deixam nas ruas.
___E, por que resgatá-lo? Quem é capaz de resgatar um louco de seus devaneios e delírios. Você já viu alguém em delirium?
Trajes dispostos sem nenhuma ambição, sem cor, sem amor e surrado pelo tempo de uso é a capa do super-herói. Nas costas uma mochila igualmente feia, presa por barbantes apontam as ambições. Ninguém reconhece seu conteúdo. A fama é maior que a pessoa.
Um louco poeta ou um poeta louco, caminha desanimado pelos becos e vielas deixando algumas mensagens coladas em postes e muros…, nas noites friorentas baforando só para ver a fumaça se formar ao sair da boca, imagina as montanhas que visitou quando ainda era criança. Sim, a mente é uma criança que se distrai com pouca coisa. E a roda de moleques com sacolas na cara ouvindo suas histórias o deixa desanimado.
___Parem de cheirar essa merda. Isso só vai fazer com que vocês percam mais tempo.
O centro é seu território, é o quintal de sua casa, anda livremente contando as pedras das guias e nenhum ser se atreve a desafiá-lo, todos os seres das ruas o reconhecem, todos o respeitam ou o temem. Não faz diferença, respeito ou temor, amor.
Deram-lhe, a alcunha de Albino, o ser noturno.
___Meu nome é…
O gosto pelas caminhadas noturnas aflorava-lhe pelas veias, fazendo com que o sangue borbulhasse ao sentir a brisa passar sorrateira todas as madrugadas continuamente a percorrer a cidade, onde, durante o dia as formigas não davam sossego. Por noite e noites cruzava o centro apreciando todas as obras de arte, todas as estátuas, todos os poemas escritos nas paredes mudas. Sentar-se diante da antiga estação de trem e pensar que dali saíram e chegaram seres diferentes.
___Luz, poderia ser chamado de luz.
Sem estadia certeira, todas as ruas são partes de um quebra-cabeça complexo, uma sala compondo-se na larga calçada. Os insetos se misturam com as pessoas e juntos brotam das latas imundas abrindo as portas de um mundo paralelamente desigual. Esses seres não o incomodam nas madrugadas, cada um desses seres tem objetivos diferentes, poucos atravessam o caminho um do outro.
___Nessa multidão, quem é o meu anjo da guarda?
Sente prazer em cada ser sórdido brotando da lama, das latas, das roupas usadas. Depois da velha estação de trem, a sua parada favorita é nas proximidades do mercado municipal e sentado sob o viaduto que cruza a avenida dos estados observar o movimento dos traficantes e das putas é uma distração que não custa nada.
___Já te disse para não me seguir.
Assiste calado a todos os movimentos, uma vez que, o silêncio é que mantêm os ajuizados vivos. Vez por outra, descansa no centro velho, próximo ao Parque das Amoreiras, aquele próximo à antiga estação luz.
___Queria saber quem é o meu anjo da guarda.
Andando de lugar em lugar, para que as figuras bizarras não se acostumem com ele. Aceita quieto todas as transas e inconformado com o valor pago para as putas e apenas meneia a cabeça e segue quieto, sem perturbar os mercadores de alucinógenos transitando no asfalto.
___Talvez você seja o meu anjo da guarda!
São incomuns os momentos em que se pode enxergar o encanto da lua. A maioria das noites são extremamente frias e feias, são cheias de nuvens enegrecidas trazendo frio e medo aos insetos rodeando a luz dos postes. Sim. Poucos, uma insignificante quantidade de criaturas, não faz uso de alucinógenos para desviarem-se da deprimente e intermitente realidade.
___Pode ficar! Se ficar quieto. Pode ficar.
Dizem que até amor demais mata! Dando margem aos espreitadores, que buscam as vítimas no desespero da realidade, oferecem-lhes falsas escapatórias, violando a matéria e o espírito daqueles que desse sentimento fazem uso abusivo. Quem é capaz de mensurar a dor de uma fome?
___Qual é o seu nome?
Entre interrogações e alucinações, Albino se levanta dando as costas para aqueles seres sem força, e diz:
___As flores inocentes e decadentes em jardins públicos são as únicas coisas que cheiro, e que suporto ter ao meu lado nos dias quentes. Se ainda assim, não me restar nada, terei a lua, terei o sol que faz brotar do asfalto negro, as flores coloridas.
Balança a cabeça negativamente, inconformado.
___Não, não aprovo o uso de qualquer forma de fuga, uma vez que detesto ficar nas mãos de terceiros. Mas, não culpo os que não conseguem por força de sua vontade manterem-se lúcidos, alertas diante das indiferenças da sociedade cruel.
A perversidade é um ponto em comum entre os andarilhos. Ninguém respeita a propriedade ou a pessoa, ninguém é dono nem dos próprios pensamentos. Assim como na natureza, os elementos são muito diferentes.
No espaço da solidão, cada qual procura a seu modo sobreviver um dia por vez. Há aqueles com pensamentos comuns que se unem: como os recicladores e seus carrinhos cheios de papelão e outros materiais, os evangélicos e suas pregações tentam salvar mais uma alma e os jovens em busca de aventuras aproveita o preço baixo para sair com as putas…, até os traficantes são unidos, nunca estão sozinhos. Enfim, cada qual se une a um grupo que tem afinidade. O universo é assim!
___Prefiro o anonimato. Ando só. Não quero atrapalhar ninguém. Não quero carregar ninguém nas costas. O peso dos anos que vivi já me é suficientemente amargo. Não posso impor minha opinião para sempre.
É preciso dentro da experiência transformar as palavras em um espaço descultural que resgate a criança perdida na dureza das responsabilidades.
___Para que quer saber se tenho alguma causa?
Após pensar alguns minutos, responde secamente:
___Não! Não tenho. Luto pela minha vida com todas as minhas forças. É somente isso.
O corpo, como qualquer coisa viva, morre um pouco todos os dias em uma comunidade maçante feito um monólogo.
___Estou sempre de olhos abertos, ouvidos atentos, e, se um dia me derrubarem, será pelas costas.
As balas perdidas estão na moda constituindo um processo anormal para se vender jornal. Os estampidos nem sempre são percebidos quando o âncora está falando incessantemente e o corpo caído é socorrido por um gari em experiência transcendental, que grita aos transeuntes, nem sempre é um derrame, nem sempre é um infarto!
___Quanto tempo faz?
O tempo para quem vive na rua é contado quando se está com fome e ou com sede…, quando se está com sono, quando é dia ou quando é noite.